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16 de dezembro de 2021
Terreiro de Xangô toca o coração da prefeita
A presença da prefeita Sheila Lemos no Terreiro de Xangô na tarde chuvosa do dia 10 de dezembro de 2021 representa um marco de memória tanto para o lugar e sua população quanto para a instituição do Poder Executivo no Município. Isto porque foi a primeira vez que um prefeito visitou aquele espaço de convivência que faz um século e tem um lugar de destaque na fundação de Conquista. É importante para a memória da comunidade que pela primeira vez um prefeito, no caso uma prefeita, visite o Terreiro de Xangô, espaço sagrado no Beco de Dôla, lugar de memória e elemento fundador de Conquista. Poderá ser importante para a História do Município se ela, a prefeita, transformar a visita e os compromissos em ações.
A reunião foi agendada pela comunidade, a prefeita atendeu e visitou, juntamente com o Secretário de Desenvolvimento Social Michael Farias, coordenadores, técnicos e os vereadores Xandó, do Partido dos Trabalhadores e frequentador do local, e Chico Estrela, líder da prefeita na Câmara. Atentamente, a chefe do executivo e o secretário ouviram as falas dos técnicos do Município, do vereador da oposição, do secretário, e em seguida das filhas do lugar, dos moradores do Beco, descendentes de Dôla, filhos e netos de Zita (que descansava no quarto ao lado, guardando a sua voz maravilhosa para o caruru das crianças). Foram discursos marcantes, mostraram à prefeita a medida das capacidades, do domínio teórico e de vivência das questões mais urgentes. Foram falas técnicas, é verdade, mas que tiveram bem demarcado o componente do afeto. Este colocou as pessoas diante de realidades apagadas e assustadoras, entre elas, as violências do Estado contra essas populações e a impunidade dos que a praticam. As vidas interrompidas, por assassinatos e também por conta do preconceito histórico, estrutural e que estabelece estados de falta e de ausência. Todas as mulheres do Beco trabalham, nenhuma tem carteira assinada. Ficou muito claro para todos ali que a sobrevivência e manutenção dos costumes originais só foram possíveis por conta da resiliência e solidariedade das mulheres. É um povo que tem nas memórias duras da sua origem, feitas de lágrima, sangue, suor e samba de roda, a razão da sua existência e é delas que tiram a força para suportar todas as dores.

Foto: Ascom PMVC
Apresentaram-se demandas de construção de equipamentos, regularizações fundiárias, criação de programas e ações. E também a antiga demanda para a certificação do espaço como quilombo urbano, em respeito à sua história e memória. No final do encontro, uma confraternização em que todos dançaram o samba de roda, selando os compromissos de parceria e criação conjunta.
Em relação à “Certificação Quilombola”, algumas palavras são importantes. Esses processos de certificação referem-se a uma carta de autorreconhecimento elaborada pela comunidade, juntamente com um estudo histórico e antropológico, eventualmente linguístico, musical, ou de quaisquer possíveis costumes ou técnicas que sejam relevantes para justificar o grupo. Em Vitória da Conquista este trabalho começou a ser feito no ano de 2004, quando o Governo Federal criou o programa Brasil Quilombola. A na época recém criada Secretaria de Governo coordenava a realização de programas federais como o Fome Zero (Compra Direta da Agricultura Local, Restaurante Popular e outros projetos e atividades) e o Brasil Quilombola. Foi criada uma equipe formada por técnicos de diversas secretarias. Esses técnicos, orientados por uma das coordenações da secretaria de Governo, realizaram estudos sobre as 42 comunidades identificadas.

Foto: Guilherme Ribeiro. Assessoria Vereador Alexandre Xandó (PT)
As comunidades foram organizadas em territórios, que formaram suas associações e emitiram suas cartas de autorreconhecimento. Posteriormente, 22 delas foram certificadas pela Fundação Palmares. Isto ocorreu entre os anos de 2004 e 2009. Em 2010, a comunidade das Barrocas, que na ocasião da certificação do seu território havia recusado a participação, procurou a prefeitura para realizar este reconhecimento. Como não havia ainda uma coordenação específica para essas políticas, e o caráter da Secretaria de Governo havia mudado, foi organizado um grupo de pesquisadores voluntários, coordenados por um servidor técnico do Município. Os voluntários eram das áreas de história, antropologia, geografia, pedagogia, linguística e psicologia, e desenvolveram estudos dentro da comunidade durante 10 meses. A certificação ocorreu em 2012 e foi a última emitida pela Fundação Palmares para o Município de Vitória da Conquista.
A coordenação de Promoção da Igualdade Racial foi criada em 2014, no mês de dezembro (Lei nº 024/2014). Desde então, ela dá manutenção às relações criadas entre a Administração e as comunidades reconhecidas anteriormente. Bancos de Dados têm sido atualizados periodicamente e um trabalho de assistência permanente para questões sazonais é realizado com regularidade. Houve, porém, desde o ano de 2012, um esvaziamento das ações em comunidades quilombolas. Passaram a se concentrar em ações assistencialistas, em detrimento das atividades de formação exercidas nos anos anteriores, especialmente nos primeiros oito anos desde 2004. Havia, naquele período, uma constância de ações de formação e capacitação, além de uma comunicação mais intensa e propositiva.

Foto: Guilherme Ribeiro. Assessoria Vereador Alexandre Xandó (PT)
Voltando, então, à visita da prefeita ao Beco de Dôla, comunidade matriarcal e marco da fundação de Conquista, este primeiro encontro da tradição com o poder público traz a possibilidade de certificação do primeiro quilombo urbano em Conquista. Traz também a oportunidade de fortalecimento das políticas de promoção da igualdade racial, e isto significa visibilidade para uma tradição que faz parte da gênese da cidade. Ao mesmo tempo, essas políticas vão inevitavelmente desvelar uma história capaz de trazer novas perspectivas e novos modos para a cidade olhar aquela comunidade e a si própria. Significa maiores possibilidades de reconhecimento de si e do seu lugar, de autoestima, melhores condições para fazer escolhas. Junto com tudo isto, a questão prática que vai permitir a vinda de recursos para capacitação e desenvolvimento, para a divulgação e reconhecimento das culturas locais, para assegurar renda, trabalho, e recursos para mais políticas de Saúde, Educação, Infraestrutura, Segurança etc.
Em termos práticos, devem ser realizadas conversas, oficinas e outras atividades para viabilizar a criação de associação por eles próprios, além de outros espaços que permitam a convivência e a reflexão sobre as identidades e as prioridades. Durante um ano de atividades, a comunidade, dá os passos para a obtenção do título e incorpora aprendizados como o de expressar seu autorreconhecimento, fazer-se ouvir. Após a escrita da carta de autorreconhecimento, onde eles contam a própria história, assinada pela Associação local, a mesma é enviada à Fundação Palmares que deverá, por fim, certificar o documento.
A cidade não sabe, mas tem uma dívida imensa com as Pedrinhas. Pela primeira vez, um gestor municipal se permitiu subir o morro e ouvir esta história dentro do Beco de Dôla, e se permitiu tocar por esta história. São memórias fortes, de uma comunidade ainda mais forte, comandada por mulheres de pulso firme, de vozes marcantes e olhares que trazem a dor, a gratidão e a alegria de serem filhas de Dôla. A certificação nada mais é do que o reconhecimento dos valores daquela gente. Para saber mais sobre a que estou me referindo, vale a pena visitar https://www.youtube.com/watch?v=VIjerRdsZoM&t=343s e assistir a uma visita guiada pela iconografia da Casa Memorial Regis Pacheco, onde conto alguns recortes de memórias sobre a ocupação do local onde hoje fica o Beco.
Sendo assim, como digo nos títulos deste texto, para transformar o acontecimento de 10 de dezembro em história, é preciso colocar mãos em obras, mãos qualificadas tanto tecnicamente quanto afetivamente, das quais o Município dispõe em quantidade. Já existem estudos importantes, lembro entre eles o do professor Flávio Passos, e outros que trazem reflexões e dados e referências necessárias para as ações com vistas à Certificação. Este documento que sempre foi um desejo daquela população e dos próprios pesquisadores que compreenderam a sua importância. Trata-se de um primeiro passo para uma retratação, para a promoção da visibilidade e a prática da escuta daquilo que as memórias do Beco têm a dizer para Vitória da Conquista. O enriquecimento será mútuo, e a cidade não faz ideia dos benefícios que as Memórias do Beco poderão trazer para Conquista.