Opinião
25 de abril de 2022
Opinião: Orçamento fictício e outras invenções, por Afonso Silvestre
Um paralelo entre a burocracia nazifascista e práticas da extrema direita atual
Os Salmos, dos quais o Rei Davi é autor de pelo menos metade, foram escritos originalmente em hebraico e chegaram até nós através das traduções para o grego e latim, que ofereceram a base para suas formas nas línguas atuais. Porém, alguns desvios ocorrem, seja pela imprecisão das línguas ou pelo interesse dos que as utilizam politicamente. Um exemplo, o Salmo 23 (22 da vulgata latina), que chegou até nós assim: “o Senhor é meu pastor e nada me faltará”. No original, “o Senhor é meu pastor, nunca me faltará”. A alteração diz respeito ao desejo de possuir bens, mostra que para esses, em essência, a presença divina nem é tão importante, basta que, de longe mesmo, Ele permaneça provendo. A reinvenção de narrativas não é algo de hoje ou ontem, nem exclusividade das religiões.

La Caduta Degli Dei, filme de Luchino Visconti, e as pessoas moralistas da extrema direita alemã nos anos 20 e 30: orgias, drogas, assassinatos, corrupção, perversões de caráter e nenhuma competência administrativa
Recorro à Bíblia, obra em geral lida pelo sovaco aos domingos a caminho da igreja pelos cristãos terrivelmente evangélicos (seguidores do evangelho, sejam católicos, sejam protestantes, sejam outros), mas é de extrema importância para compreender a alma humana. Esta leitura ajuda a destacar a inépcia, grosseria e irresponsabilidade de alguns cristãos envolvidos no exercício da gestão pública hoje, em paralelo aos costumes dos anos da década de 1930 na Alemanha, quando pessoas de poucas habilidades eram nomeadas para cargos onde se tornavam responsáveis pela morte de milhares de pessoas.
Nas relações sociais, a ética e a política são vias em que reinvenções causam danos a muitas pessoas. Vou utilizar exemplos para ilustrar. Ano passado, Conquista assistiu a um gestor defender a não aplicação correta de recursos e afirmar que “o Orçamento é fictício”. Na ocasião, ao relativizar a importância desta omissão, não utilizar fundos orçamentários destinados à sua pasta, e que têm a ver com auxílio emergencial na pandemia, sugeriu aos beneficiários se reinventarem e levar chapéus à feira para arrecadar, ou esmolar. Claro que a prefeita, com a sensatez que deve ter todo gestor responsável, afastou o então secretário de Cultura.

Fausto e Mefisto, da obra de Goethe escrita nos séculos xviii e xix que mostra os conflitos do primeiro herói moderno diante do espírito que tudo nega, tudo despreza, a tudo destrói
É preciso lembrar que uma pessoa que ocupa um espaço de poder nunca vai ser média. Os registros da sua existência vão revelar um Fausto ou um Mefisto, como consequência natural do poder. Qualquer ato vai impactar a vida de uma quantidade grande de pessoas. A presença do servidor que deturpa o sentido da função e despreza o público que necessita do seu trabalho é tóxica. Escorado na ideia imaginada de uma ficção orçamentária, ofende técnicos do Governo e Legislativo que, durante meses, analisam e ajustam a peça produzida pelo Executivo a partir de informações dos secretários. Incapaz, sequer utiliza os recursos disponíveis por não conhecer os caminhos. Ao longo dos anos, esses arranjos que põem quaisquer uns no exercício da gestão pública, gerou uma súcia desqualificada que invadiu o ambiente técnico, cheia de desejos e nenhum conhecimento. Kafka descreveu isto perfeita e assustadoramente alguns anos antes do surgimento da burocracia nazista que, em resumo, era tal qual como vemos hoje.

Kafka, que faria 139 anos em julho, criou na literatura um ambiente sombrio de burocracia, corrupção e violência que antecedeu o nazismo
Em março de 2018, dei entrevista ao site Avoador sobre ressignificação do “fascismo”, e disse como seria um governo de extrema direita que iniciaria no ano seguinte. A vivência confirmou o dito. Cargos ocupados por pessoas de baixa capacitação técnica, moral ou cognitiva. A máquina se desfaz, derrete, inviabiliza. A infelicidade de negar sua própria responsabilidade é apenas uma manifestação entre tantos atos absurdos tidos como normais. Recentemente, para as celebrações do Dia Internacional da Mulher, uma dessas servidoras comissionadas locais enviou para uma profissional de dança mensagem convidando a realizar apresentação gratuita em homenagem à Mulher. “Você aproveita e divulga seu trabalho”, disse a proponente.
Porém, como na experiência alemã no final do período entreguerras, a violência é crescente e quase imperceptível no início. Não é apenas uma fantasia de “orçamento fictício”; nosso personagem é, de fato, uma legião que avança em seu misto de ignorância e tendência à violência, quando a boca não se controla ou aquieta, e troca a ferramenta do conhecimento técnico por frases como “você devia ter ficado calado” ou “você deve tomar cuidado…”, ou “o Conselho [de Cultura] tem que ficar calado”. Todos devem calar enquanto ele grita e age com improbidade. Todo extremo é sem noção.
É comum ver gestores agirem com certeza de impunidade. Uma realidade presente, costumeira. No caso do personagem, não se trata de um gângster com poder para subornar ou ameaçar a todos. Apenas a representação quixotesca do homem frágil, sem especialidades, poucos conhecimentos e parcas referências de modos e comportamentos. Ascende ao poder por favor e sem conhecimento. Isto, em si, já é uma prática que atenta contra o serviço público, sua qualidade, e contra os recursos públicos, sua destinação. A prática da ocupação de cargos não por técnicos ou intelectuais orgânicos, mas cabos eleitorais brutos que não conseguem medir as próprias palavras.

Mussolini, criador do fascismo, faz motociata em Roma, 1933, enquanto a Itália passava fome
Mussolini disse, “o fascismo é eterno”. Claro, se retirarmos dele tudo que é “essencialmente fascista”, continua sendo o que é: movimento de agregação da frustração individual em torno de um líder nacionalista. Sem ligação com o poder, o fascista é sempre o frustrado, incapaz. O problema está na normalização dessas pessoas como aptas a ocupar lugares de decisão. A legitimação do precário é o primeiro sinal de tempos decrépitos. E o Brasil vive em estado constante de putrefação e renovação a partir das próprias vísceras apodrecidas. Daí, quando de tempos em tempos, entes brutos chegam ao poder, como militares e homens pequenos fizeram ao longo de toda a República, um golpe após outro, tudo vira de cabeça para baixo. Tudo é ficção a partir de então.
O maior problema desse modo de ver o mundo não está no centro do poder, se é que isto existe. Não sei quem disse “eu não tenho medo do Hitler, mas sim do guarda da esquina”, e eu acrescentaria “e do pastor, do padre, do vizinho, do vereador, do cobrador de ônibus ou do moço da venda…” O fascismo é nada além do desejo daqueles que não suportam mais a violência que sofrem, o desejo de que a impotência da sua vida ordinária seja substituída pela força e violência de indivíduos que teriam o direito, por serem vítimas, de andarem armados, dizerem o que pensam (e entendem o que pensam como opinião, mesmo que não tenha sentido ou contexto), e também cultuar violência, não se vacinar… Fascismo é desejo equivocado de liberdade, pensar que se pode exercer como quiser a própria violência. Para muito além da política, é um modo de ver o mundo.
O personagem tinha ideias de fraudar leis para “facilitar coisas”. “A lei é apenas um detalhe”, diz o nazista no filme do Visconti, La Caduta Degli Dei. Na gestão do orçamento da Lei Aldir Blanc, ao ser alertado por estar fazendo algo passível de punição, faz piada com o interlocutor. “Ora, você se preocupa com qualquer coisa!” Na ocasião, por sentir-se incapaz de lidar com as regras, achou por bem, de modo grosseiro, assediar conselheiros para macomunarem e descumprir orientações de uso dos recursos federais. Os conselheiros não aceitaram, mas fica o registro para quem quiser conferir, conforme lei 12.527, de 2011. Não é o caso de dizer que seja um corrupto mal intencionado. Pelo contrário, é um corrupto de boas intenções. Nem todos sabem o que são. Alguns aprendem que as coisas devem ser resolvidas de qualquer jeito, e isto seria heroísmo. Já disse que, em política, ingenuidade é pior que maldade. Já vi gestores irem pra cadeia ou até morrerem, desavisados, por atos de ignorância. Piores mesmo são as consequências para o povo.
Tudo isto de que falo é presente, costume há séculos, está incrustado. Uso referência atual para afirmar que é preciso acabar com esta prática no ambiente do serviço público. A troca de favores para acomodar aqueles que não conseguem lidar com as próprias frustrações é ruim. Quem vê na mentira o recurso mais fácil, mesmo que insustentável, não tem o conhecimento necessário para o exercício honesto e competente. Hannah Arendt distinguiu os espaços da política e da família (como Aristóteles), classificando o segundo como uma esfera pré-política, inferior ao da política, uma preparação para a vida pública. Ou seja, se a pessoa não desenvolve uma ética individual no primeiro ambiente, dificilmente vai se adaptar à polis. Tanto pior se ela cai por acaso, ou por favor, numa cadeira de gestor. Basta olhar para as consequências das nomeações dos feixes de frágeis para o exercício da burocracia na Itália fascista, na Alemanha nazista ou no Brasil republicano.
Voltemos ao orçamento fictício. O sistema de planejamento preconizado pela Constituição de 1988 e outras instruções normativas é complexo, composto de peças jurídicas orientadoras para aquisição e utilização de recursos necessários aos planos da gestão. Cada secretário reúne equipe e fornece aos técnicos as informações para produzirem os documentos orientadores de gastos. Isto ocorre a partir de planos que não podem ser fictícios, como não poderiam ser as peças orçamentárias. O material é encaminhado ao Legislativo, onde, durante meses é analisado e ajustado junto com o Executivo. É um trabalho árduo dos dois poderes e de grande responsabilidade, que diz respeito aos cuidados com a população e que, por ignorância e improbidade, foi negado pelo gestor. É a cultura nazi-fascista, onde “a lei é apenas um detalhe” para quem está ao lado do poder.
Mentir é impulso, sobrepõe a razão, como o medo. Não é ato de liberdade porque quem mente não faz o correto, é incapaz de responder efetivamente por seus atos, é irresponsável. Só podemos responder quando determinamos nossas ações. Gestores capazes de dar respostas, assessorados por técnicos qualificados e certificados, funcionam melhor que mentirosos, e é sempre por essas e outras que esses comportamentos duram pouco na política. Caem pela força da gravidade.
Para finalizar, é importante lembrar que a cidade tem um Conselho de Cultura atuante, e um secretário de Cultura que há quase um ano ouve e reconhece o valor e a necessidade da competência de assessores e técnicos. Quanto maior a competência, mais realizações. Infelizmente, os fatos descritos aqui em resumo não são passado. Suas consequências ainda estão bem presentes.
Uma observação: Após a entrada da prefeita Sheila Lemos, notam-se várias distorções sendo resolvidas pontualmente. Claramente não é mais um governo extremista, mas, percebem-se, ainda, duas forças atuando, política e administrativamente, no âmbito do governo: a vontade do Gabinete da Prefeita, e a vontade dos remanescentes do Governo anterior. Ambas as forças e desejos estão em direção e sentido contrários. Esta falta de diálogo e ajuste tem causado tropeços desnecessários.
*Afonso Silvestre é historiador e funcionário público municipal.