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Colunas
21 de abril de 2022

Opinião: “O movimento negro está só?”, por Afonso Silvestre

 

 

Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa contra a mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade, decepado

Entre os dentes segura a primavera

(Primavera nos Dentes, de Gerson Conrad, compositor nascido em 1952)

 

Vamos de estória. Tinha o Joãozinho da cidade e o Joãozinho da periferia. Mesma idade. O primeiro, ia pra escola depois de tomar farto café da manhã, em proteínas, vitaminas, cálcio, ferro e açúcares, cujos problemas as visitas periódicas ao dentista sequer deixavam surgir. Seu pai o levava de carro até a escola, onde ele era um sucesso. Seus tênis novos eram admirados pelas meninas e desejados pelos meninos, era um cara desinibido, sequer conhecia razões para se ter medo na vida. O segundo acordava às cinco da manhã, comia um pedaço de pão molhado no café ralo e caminhava calçado em suas havaianas velhas com tiras emendadas por pregos. Chegava um pouco atrasado, os pés amarelos de poeira, riam dele e a professora sempre dava uma lição sobre responsabilidade diante de todos. Seu dente começava a doer, mas ele sabia que não ia adiantar reclamar com os pais, teria que aguentar até o dentista aparecer na comunidade.

Os dois meninos imaginários da nossa estória não são iguais e terão vidas completamente diferentes. O primeiro vai seguir estudando e entrar na universidade após ter se preparado em cursinhos privados. O segundo terá que trabalhar muito e precisará de cotas porque não terá como competir em igualdade com o concorrente. Se conseguir vencer todas as etapas da estrutura racista, passará pela universidade, cursando medicina, por exemplo, ouvindo coisas do tipo “não confiaria uma cirurgia a um cotista”, ou, “são profissionais inferiores, mesmo na faculdade mostravam-se insuficientes em língua portuguesa…” 

Geralmente, a defesa do argumento contra as cotas é que elas seriam uma “esmola”, algo pouco digno. Junto com este argumento de opinião baseada em ignorância e séculos de opressão, vêm as palavras-chave “mérito”, “esforço pessoal”, “vara de pescar e anzol”… Penso que cotas são vergonhosas tanto quanto necessárias, e que o ideal é avançarmos com elas até não precisarmos mais, até que Joãozinho da cidade e Joãozinho da periferia possam ter as mesmas perspectivas.

Cotas são vergonhosas porque mostram, sendo necessárias, o nível de atraso e racismo em uma sociedade. Ele está presente em todos os setores, inclusive nas esferas de gestão, controle e regulação, demonstrando que não há amadurecimento, que as atitudes, até mesmo do Estado, são extremamente infantis, instintivas. Por quê? O preconceito é uma defesa natural do intelecto contra o que é diferente e por isso assusta. Diante de uma situação nova, em que precisamos de uma explicação e não temos os conteúdos, usamos o preconceito para nos defender na urgência. Porém, se não revemos a posição, se não a confrontamos com informações, estamos incapacitados a ter alguma opinião, ideia, juízo ou raciocínio. O preconceito, aquela defesa natural, torna-se doença grave, o racismo, a xenofobia, a misoginia, a homofobia e outros ódios e frustrações.

Pois bem, sobre o racismo que se espalha desde as estruturas reguladoras da sociedade, quero lembrar uma sessão especial na Câmara de Vereadores ocorrida em 24 de Novembro do ano passado, em celebração ao Dia da Consciência Negra. Embora a Casa tenha incentivado e oferecido todas as condições para o evento ocorrer, nem todos os vereadores estão aptos a debater certos assuntos. Na sessão, um edil negro e policial militar, nega o preconceito, afirma que a palavra racismo não deveria existir, sugere uma discriminação na formação da mesa, onde se veem “apenas representações de religiões de matrizes africanas”… depois, porém, o discurso perde o nexo e conclui falando que “assim como morrem negros nos presídios e favelas, morrem policiais negros arrastados pelas ruas por traficantes às vezes brancos e às vezes negros”, e que, por isso, “temos que saber colocar cada um em seu devido lugar, não podemos generalizar o que a PM faz…”

Sobre a ausência do ecumenismo reclamada pelo vereador, concordo, mas tem havido avanços consideráveis quando vemos, por exemplo, pastores protestantes negros participando do Conselho de Promoção da Igualdade Racial, bem como representantes de uma paróquia católica. Mas, pela fragilidade e demonstração de desconhecimento das pautas que orientam as questões discutidas na Sessão, o discurso do vereador não tem bases de sustentação ou familiaridade com o assunto. Nega aspectos estabelecidos como prioritários. Declara-se negro, o que consideramos tratar não de ato deliberado de negação da própria causa, mas de ingenuidade triste que mina as lutas e as conquistas do povo negro. Apesar da fragilidade, desconhecimento e ausência de más intenções, consideramos relevante apontar o discurso e lembrar a responsabilidade do autor em relação aos pontos da discussão, esperando que busque o conhecimento e a verdade com leituras e diálogos. 

Na mesma sessão, outro vereador também mostra desconhecimento sobre a essência do racismo anti-cotas, que é a nossa estorinha. Como professor do curso de Medicina da UESB, pontua casos de cotistas “que não têm capacidade de ler”. “Entram por uma porta (as cotas) e saem médicos excluídos” (mesma conversa que o Joãozinho periférico escutou). Inclui algumas pérolas do racismo, talvez a melhor delas tenha sido que “não precisamos de política de cotas, mas de um ensino médio que qualifique por mérito”. Falou de alunos cotistas como pessoas menos dotadas de capacidade cognitiva, que têm “letras desenhadas”, ou infantis (seriam piores que as dos médicos não cotistas?). Enfim, sugere que a UESB faça um curso de reforço para os alunos “completamente perdidos”. Em resumo, o edil, médico e professor, demonstrou desconhecimento sobre aspectos das Cotas, embora estas bases estejam distribuídas em farta bibliografia. Distante de todas as orientações metodológicas, epistemológicas e do bom senso sobre o entendimento daquele mecanismo de inclusão, o edil revela seu equívoco de interpretação. E é triste, mas eu não creio que ele desconheça as estatísticas de desempenho de cotistas nas universidades brasileiras.

Considero de extrema importância lembrar, ainda sobre a fala do vereador, que médicos e advogados, em expressivo número, são profissionais que têm muita dificuldade em se expressar, seja graficamente, seja gramaticalmente, seja semanticamente. E isto não tem nenhuma relação com a cor da pele deles e nem mesmo com a origem social. Mas tem a ver com uma espécie de fantasia, um mundo em que o que importa são as aparências, nunca a essência.

Na época da Sessão Especial, novembro de 2021, o Centro Acadêmico do curso de Medicina da UESB divulgou nota que não teve repercussão, alertando para a fraude nas cotas por falta de fiscalização. Infelizmente, muito provavelmente pelo racismo estrutural que se reproduz de maneira cega, surda e muda, a imprensa não deu visibilidade à nota. Há mais de dez anos, fui convidado para opinar no caso de um desses crimes de fraude, onde a pessoa se declara quilombola sem ser. Estava provado que o estudante fraudou o sistema, opinei que ele fosse processado e punido por falsidade ideológica. Porém, isto não ocorreu. O fraudador apenas foi convidado a deixar o curso, mostrando que não é um risco tão grande cometer fraude para conseguir um curso “gratuito” de medicina.

Da mesma forma que a nota do Centro Acadêmico de Medicina da UESB não teve apoio da imprensa para divulgação, as falas tristes de vereadores não tiveram resposta. O movimento negro e as religiões de matrizes africanas, alguns estudantes e pesquisadores, não conseguiram mobilização suficiente para exigir resposta de maneira democrática e com a devida visibilidade e legitimidade.

Neste ponto, percebemos que os partidos também ajudam a reproduzir o comportamento racista das instituições. Nenhuma ajuda dos partidos neste caso, nenhum diálogo ou ação efetiva, um simples movimento de um dirigente para que se obtivesse o direito de resposta em plenário. Seria a oportunidade de oferecer aos vereadores informações relevantes que podem ajudar bastante a esclarecer aquilo que, creio, não seja má fé, mas pura ignorância e seu velho sintoma, o preconceito.

Falamos das omissões do Poder Legislativo, dos Partidos e da Imprensa. Mas vejamos como se comporta a sociedade civil. Aquela representada pelo porteiro que não deixa a moradora do condomínio entrar por ser negra. Ou que escraviza uma pessoa para trabalhos domésticos por 40 anos, ou o latifundiário que escraviza vários. Que discrimina moradores de determinadas regiões sem saber porquê, e sem ao menos saber que têm, na verdade, dívidas impagáveis com eles. A mesma sociedade civil que, em 1997, ouvia a imprensa posicionar-se contra o Programa Conquista Criança ser instalado no centro da cidade. Moradores estumavam cães contra os adolescentes porque, de acordo com um radialista, seria perigoso manter aqueles “pequenos marginais” ali, em área nobre. Este viria a ser eleito chefe do Executivo por duas vezes.

Mulheres do Beco, durante reunião no terreiro

Uma vez no Executivo, aquele prefeito reproduziu o que já vinha sendo feito em relação à promoção da igualdade racial, que era uma ação meramente racional, algo do tipo “tem que ser feito”. Órgãos criados para estar engessados e que, pontualmente, realizavam alguma assistência. Para se ter uma ideia do desinteresse em certificar comunidades tradicionais, basta notar que só o atual Governo, após 10 anos, decide retomar esses processos, iniciando pelo Beco de Dôla, comunidade quilombola urbana organizada em torno de uma família matriarcal há pouco mais de cem anos. E para reforçar o argumento do cultural (ou costumeiro) desinteresse institucional, lembremos que o setor responsável pelas pesquisas e ações para a obtenção do documento foi criado em 2013, um ano após a última das certificações, que vinham sendo realizadas desde 2004, a da comunidade das Barrocas em 2012. Esta não foi executada pela Prefeitura, mas por parceria mobilizada entre estudantes e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. A Prefeitura naquela ocasião cedeu o transporte e, durante um ano, esta equipe discutiu, construiu o projeto e realizou atividades junto à comunidade, ajudando-a a compreender-se melhor e relatar em primeira pessoa suas memórias numa carta de autorreconhecimento, posteriormente certificada pela Fundação Palmares.

Objetos que representam lugares de memória para as mulheres do beco de Dôla

Finalmente, em 2022, o Município retoma o trabalho de pesquisa e certificação de comunidades, e isto é louvável, e vai trazer à luz de todos a dívida que a cidade tem com o Beco de Dôla e nem sabe. Vai melhorar as relações da cidade consigo mesma, vai trazer melhor qualidade de vida para um grande número de pessoas e vai ajudar gestores e legisladores a conhecerem melhor suas demandas e responsabilidades. Porém, para realizar este planejamento e outras atividades daquela Coordenação, a infraestrutura disponível é extremamente precária e sem recursos materiais para o trabalho diário. Este é um elemento importante do dito “racismo institucional”: existe uma “vontade política”, mas sem o devido conhecimento e sem o devido planejamento. Assim, as coisas acontecem não em consequência dos planos, mas ao acaso, quando são pegos pelas oportunidades.

E o Poder Judiciário? Bem, de cada três presos no Brasil, dois são negros. E a cada ano diminui o número de brancos ao passo que aumenta o de negros nas prisões. Lembremos o morador de rua Rafael Braga, detido e condenado em 2013 por portar um vidro de desinfetante. Outro negro, Ogo Alves da Silva, está preso desde 2015, acusado de ter esfaqueado um médico na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. No momento do crime, testemunhas do processo afirmam que ele se encontrava em casa, na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio, a mais de 15 quilômetros de distância do local do crime. Mas a polícia foi até sua casa e encontrou facas, instrumentos de trabalho da mãe dele, catadora de material reciclável. Elas foram usadas como prova. 


Eleição do Comppir – Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

Então o Movimento Negro está só? Sim, partindo do pressuposto de que o racismo estrutural seja o ditador do caráter das instituições, o único grupo da sociedade que tem consciência desta violência é a vítima. Algumas instituições me desmentem, obviamente, quando pensamos na Ordem dos Advogados do Brasil na cidade de Conquista, que mostra sinais de uma reorganização em resistência às práticas arraigadas por costume em nossa estrutura. E também o surgimento de representações de igrejas evangélicas, ou seja, católicas e protestantes, no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, e a manifestação do CA do curso de Medicina da UESB em defesa das cotas e proteção dos cotistas. Mas há pelo menos duas décadas quase nada foi feito em Conquista contra o racismo estrutural. As instituições, por entenderem que algo deve ser feito, criam simulacros, ou eventualmente até mesmo iniciativas bem intencionadas, mas pouco efetivas. De resto, a ignorância de boas intenções, a ingenuidade política que traz males piores que os da maldade, a pulsão pela autodestruição coletiva, pelo ressecamento da memória e do conhecimento de si própria.

No momento, instituições como o poder Legislativo e Executivo podem melhorar e exercer com mais qualidade e sustentabilidade suas ações. E têm se esforçado, quando vemos o apoio da presidência da Casa Legislativa à realização da Sessão Especial, e a disposição da Prefeitura ao retomar os processos de reconhecimento e diálogo com comunidades. Também os partidos devem dar suporte e ajudar a conduzir a voz do Movimento para que ela seja ouvida. Neste caso, é louvável que o Partido dos Trabalhadores tenha empossado recentemente, como Secretário para as questões da Promoção da Igualdade Racial, o professor e Mestre Flávio Passos, autor da dissertação que fundamenta os trabalhos para a certificação do Beco de Dôla, realizado por governo do Democratas.

Sessão Especial na Câmara em 24 de novembro

Ajudaria muito se, neste momento, Imprensa e Universidade ingressassem nesta pauta da preservação da memória do povo negro, reconhecessem sua importância para a compreensão das identidades conquistenses, e, principalmente, ajudassem a promover a sua visibilidade. Sabemos que o planeta vive, entre outras, uma crise de entendimentos sem precedentes. Com a multiplicação das possibilidades de influência proporcionada pelas redes, muitas vezes meras opiniões tomam a forma de saber científico, e este fenômeno tomou tais proporções que casos como os pronunciamentos dos vereadores aqui referidos são comuns e tidos como normais. Isto faz de nós, entes individuais ou representantes institucionais, corresponsáveis pelo empoderamento da população sobre a informação clara, fundamentada e que permita melhores capacidades de decisão, escolha, respeito e entendimento sobre o outro. E que, principalmente, colabore com a autoestima de pessoas historicamente fragilizadas e em múltiplos riscos sociais, econômicos e pessoais.

Escrito por: Afonso Silvestre

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