Opinião
9 de maio de 2022
Opinião: Niezsche, 40 anos de Blade Runner e a tristeza
“Neste país e neste momento
Não deveria haver noites escuras
nem pontes altas nem sobre os rios.
Sejam horas entre a noite e a manhã
e esse inverno é para quê… pra quê! isso é perigoso!
Pois diante dessa fria miséria, pessoas jogam
em um momento sua vida insuportável fora!”*
(Hanns Eisler, 1898-1962)
O bom de ser um velhinho mais jovem, com 55 anos, é a vantagem de poder observar com humor as dificuldades de convivência no tempo atual. A internet não é o poço de conhecimento com que sonhávamos há vinte anos, a capacidade de ouvir das pessoas diminui acentuadamente a cada geração, e de compreender também, e este déficit de percepções e conteúdos conduz a uma vida medíocre, injusta para muitos que, diferente do Caetano, não sabe o que é bom. Mas, com toda certeza, alguma coisa está fora da ordem.

Hanns Eisler foi aluno de Schoenberg aos cinco anos de idade em Viena, mas em 1933 teve que exilar-se na Califórnia para fugir das perseguições nazistas. Após a Guerra, passa a ser perseguido nos Estados Unidos pelas mesmas razões: era considerado uma espécie de Karl Marx da música, por conta dos seus conteúdos políticos.
Dia desses ouvia uma canção do início do século XX, de um compositor alemão chamado Hanns Eisler, Über dem Selbstmord ou, em português, “sobre o suicídio” (epígrafe deste texto, o original está disponível ao final). Quis acompanhar a canção, fui ao google e digitei o nome dela e do compositor, achando que ia aparecer a letra, mas o google sugeriu buscar ajuda e ligar 188. Esse tipo de malentendido não é novidade nas minhas relações (com redes) sociais. O facebook me expulsou porque usei ironia para criticar um ministro, e fui acusado de ser o que o ministro estava sendo: propagador do nazismo. Em 2020, descrevi como é morrer de covid por falta de ar. Alguém me denunciou e o face me ofereceu ajuda. Anos antes, fui procurar informações sobre uma música do catalão Fernando Sor, do século XVIII, o google me mostra ‘fernando e sorocaba”, página após página.
Vi nascer a internet e vou ver seu fim, como está hoje. Os algoritmos não dão conta das diversidades e idiossincrasias humanas. Ninguém consegue se comunicar mais. Ter contato ou interagir não é o mesmo que manter uma comunicação funcional propriamente dita. Como bem disse o cineasta e pensador conquistense George Varanese, as pessoas amam o instantâneo mas esquecem que só podem existir na duração. Mas o que está fora da ordem? Por que o mundo anda tão desprotegido, desesperado, triste e sem perspectivas?

O Grito, Edvard Munch, 1892. O desespero diante de um século que vem trazendo a guerra e a peste, a ignorância e a miséria.
As últimas gerações assistiram sonhos se desmancharem no ar como tudo que é sólido. Me veio à lembrança o distante Sete de Setembro de 2000 quando, naquela manhã de quinta feira sob um sol sertanejo e cínico parecendo rir das caras de todos nós, me vi no desfile com o Grito dos Excluídos. Era um tempo em que a cidade assistia as pazes entre o povo e seu governo, quando comissionados desfilavam o “Dia da Independência” juntos à “massa” de oprimidos. Num daqueles instantes, assisti a uma cena comovente. Um secretário e um assessor especial expressavam emoções por estarem participando ali. Um deles, com brilho de felicidade, esperança e otimismo quase infantil nos olhos, exclamava e repetia “estamos de volta às bases”, em genuína emoção. Pois bem, vinte anos depois, ao reencontrar essas pessoas, percebi que alguns daqueles jovens com brilho de esperança e sonho nos olhos haviam se tornado velhos burocratas de costas curvadas e pares de cifras nos olhos.
Por que gerações se deixam derrotar? Por que ignorar os ruídos na comunicação? Por que temos sido frustrados e desesperançosos a ponto de nos isolarmos mais e mais, construindo bolhas ao redor e reinventando nossa própria verdade? Estas perguntas me remetem ao crepúsculo do século XIX, mais precisamente em 25 de agosto de 1900 quando, decorrente de um quadro esquizofrênico provocado por sífilis, morria, para o alívio do mundo burguês, o Anticristo, a Besta do Apocalipse, Friedrich NIetzsche. Naquele momento, ganhavam força na Europa ideias de eugenia, dominação, imperialismo, a insistência da Santa Aliança. Contra o avanço liberal, o desejo de retrocesso, a luta que ia culminar na Primeira Guerra Mundial, “a guerra para acabar com todas as guerras…” O mundo em desespero cego.

“o sonho de Raskolnikov”, de Mikhail Shemyakin, ilustração para capa da edição russa de 1964 de Crime e Castigo onde Rodka parte para cima dos bêbados que maltratam o cavalo, para depois abraçar o animal e chorar.
Em 1889, em Turim, 11 anos antes de morrer, Nietzsche acabara de escrever O Anticristo, e, ao ver um camponês bêbado chicoteando cruelmente um cavalo já sem forças, corre em direção ao animal e abraça-o, em prantos. Vinte e três anos antes, Dostoiévski lançava Crime e Castigo. Na obra, um dos sonhos (todos de um realismo assustador) do personagem Raskolnikov é uma cena idêntica à descrita sobre Nietzsche em depoimentos, biografias e outros documentos. Não se sabe por que Rodka (o apelido do personagem do livro do Dostoiévski) chorava enquanto abraçava o cavalo açoitado por bêbados em seu sonho – se remorso pelo assassinato da velha usurária, se por estar cercado da miséria e desgraça de quem amava, se por sua amada que precisou prostituir-se para alimentar a família miserável e a mãe tuberculosa, ou sua irmã, em trabalho escravo… Não há como saber, mesmo porque Freud ainda não havia reivindicado os sonhos como objeto científico. Porém, há depoimentos dizendo que Nietzsche, enquanto chorava abraçado ao animal, soluçava e pedia perdão à mãe.

Meme cristão bastante engraçado que mostra certo mal entendido sobre a frase repetida por Nietzsche.
Solidão, remorso, autopiedade, abandono. O homem em seu tempo fazendo suas escolhas. Em 1882, em A Gaia Ciência, Nietzsche faz pela primeira vez a referência ao fato de Deus estar morto. Na obra, na segunda vez que cita, “Got ist Tot”, na seção 125, ele faz a referência direta ao nosso íntimo Deus cristão:
“[…] Deus Morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possuiu de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob nosso punhal – e quem nos lavará desse sangue? […]”. §125 – O Insensato.
A obra diz que a vida deve ser pensada, construída, vivida como arte, para que tenha valido a pena. Talvez por isso, num momento intenso de sofrimento, misto de piedade por si e pela humanidade, ele tenha encenado em Turim um empilhado de referências do seu tempo. Para além do Dostoievski (a quem Nietzsche considerava um “excelente psicólogo”), a atitude remete a dois versos do inglês William Blake, “a horse misused upon the road calls to heaven for human blood”, ou, em tradução livre, “um cavalo maltratado na estrada clama aos céus por sangue humano”.
Para prosseguir, juntemos essas informações-chave. Ruídos de comunicação entre gerações, algoritmos ineficientes, desejo e realidade, as massas e o poder, sofrimento, arte e beleza, compaixão, “Deus Morreu!”, miséria humana, abandono. E vamos dar um salto de cem anos desde o lançamento de A Gaia Ciência, para o lançamento do filme Blade Runner, em 1982. A máquina vence o homem. Mas não exatamente a “máquina”. Na verdade, o homem é vencido por um “ser” criado por ele mesmo. Estes seres, rebelados, precisariam ser exterminados, mas a palavra utilizada era a eufêmica “retirados”. Como os seres eram parecidos com os humanos, utilizavam como método de distinção para evitar a “retirada” errônea de humanos uma engenhoca de testes com nome pretensamente científico.
Os replicantes se rebelam porque querem mais vida. Tinham “prazo de validade”, um fator de segurança

Em Blade Roy salva Deckard da morte após derrotá-lo, mas…
que limitava-os a viver por cinco anos. A trama vai conduzir à batalha final, entre o líder dos replicantes, Roy, e o herói, Deckard, o caçador de andróides. Deckard, por sinal, nunca se submeteu ao teste, e, de certa forma, esta incerteza o incomodava. Principalmente porque se apaixonara por uma andróide que não sabia ser o que era. O herói perde a batalha final com o replicante-andróide-ser, mas é deixado vivo. O “ser” vence a batalha, mas morre pelo “prazo de validade”. E o herói fica com a incerteza de ser ele mesmo uma versão “mais humana” de um ser criado por outro ser, humano ou não.
A trama é previsível, e no meio há uma cena particular que, pra mim, foi a mais marcante: o replicante encontra seu criador. Quer saber a razão de ter prazo de validade (na verdade, todos temos…). Sem resposta satisfatória e com prazer, a criatura mata o Criador e diz “eu quero mais vida, Pai”. “Deus” está morto pela criatura. A questão é a frase mais citada de Friedrich Nietzsche. O homem está só, em consequência dos seus próprios atos. Em “Assim falava Zaratustra”, “O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre o abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar”.

…antes de morrer conta a Deckard sobre as maravilhas assustadoras que viu e nenhum homem jamais verá.
Nietzsche, assim, antes de nascer o romance O Fio da Navalha (de Somerset Maugham), já transmudava o fio em corda. “O homem é travessia”, viria a dizer depois também Guimarães Rosa, e logo acrescentava: “Viver é muito perigoso”. E por quê não lembrar Vinícius, já que “são demais os perigos desta vida”? Blade Runner recebeu, no Brasil, o complemento de “O Caçador de Andróides”. Mas como nos lembra Roy, os “replicantes” não são máquinas, mas “seres”. Têm, entre outras coisas, vontade. Este é o tema da superação. Os replicantes não são simples super-homens, mas homens para além-do-homem. Confusão que começa com a apropriação do tema por Hitler, a partir do conceito de Nietzsche, que utiliza a expressão “Übermensch”. Uma leitura isenta traz, literalmente, “para além/Über do homem/Mensch”. Bem a propósito, Roy, o replicante-chefe da rebelião, é, fisicamente falando, um ariano perfeito.
Nietzsche morreu à beira do século XX e a humanidade gastou pelo menos metade do século lendo errado, associando suas ideias de superação do homem a discurso racista. Em Blade Runner, o que era totalitarismo nazi-fascista dos anos 1930/40, é substituído pelo totalitarismo capitalista tecnológico, que “brinca de Deus” e “cria a vida a serviço da raça”. Se há algo sério e extemporâneo no filme é o desejo inconsciente e perverso da ascensão do capitalismo como marca histórica da Morte de Deus.
As gerações recentes ainda são vítimas daqueles mal entendidos, daqueles abandonos. Nenhuma geração teve a coragem de dar o passo e cruzar a linha que separa o século XIX do XX. A humanidade ficou confortavelmente atrás, entrando pelas mesmas portas e causando males piores a números maiores de pessoas. Gerações covardes construíram um sistema de pensamento, um weltanschauung (em tradução livre, “o meu jeito muito particular de ver as coisas”) com a finalidade de defenderem-se daquilo que as amedronta: o novo, o diverso.
Então viemos dar nesse estado de coisas em que cada um constrói sua verdade e se relaciona com quem tenha construído verdade parecida. Um mundo de adultos tristes com sua impotência. Não suportando mais a violência contra sua fragilidade, criam a própria realidade. Retornamos ao ponto de onde começamos. Se você não se encaixa no perfil de humanidade que se replica desde o início do século XX, provavelmente será mal compreendido pela sociedade e pelos algoritmos. Provavelmente, ao buscar Fernando Sor, terá que rolar bastante até sair do universo de fernando e sorocaba, que é imenso, e pode um dia não se acabar mais.
Há no pensamento revolucionário da esquerda histórica uma intensa vontade de morte do Pai/Ordem, e sua substituição pelo Estado. A Mãe/Liberdade individual – e identidade – teria, obviamente, que se postar no divã, em xeque. Quem não conhece o lado iluminista de Nietzsche pode se espantar com o aforismo 455 de “Humano, demasiado Humano”:
“Quando um homem não tem filhos, não tem pleno direito de intervir na discussão sobre as necessidades de um Estado” (…) O desenvolvimento de uma moral superior depende de que a pessoa tenha filhos; isso desfaz seu egoísmo, ou, mais corretamente: isso amplia o seu egoísmo no tempo, e o faz perseguir seriamente objetivos que vão além da duração de sua vida individual”.
Qualquer Papa assinaria embaixo. Assim, teríamos, em tese, uma solução para a segurança social daquele 2019 imaginado, quando, segundo Blade Runner, teríamos fabricado seres, mas, por favor, sem prazo de validade. Antes, e pelo contrário, um bom aparelho reprodutor. E – como ainda existia em 2019 o discurso romântico, por que não livros, música, vinho e poesia? Seria o bastante para que Nietzsche, um dia, pudesse sorrir. Quem sabe no eterno retorno, talvez. Quem sabe quando o burocrata, um dia, se ver novamente junto às massas…
*a tradução da epígrafe foi “freestyle”, segue o original, mais confiável:
In diesem Lande und in dieser Zeit
Dürfte es trübe Abende nicht geben,
auch hohe Brücken über die Flüsse.
Selbst die Stunden zwischen Nacht und Morgen
und die ganze Winterzeit dazu; das ist gefährlich!
Denn angesichts dieses Elends werfen die Menschen
in einem Augenblick ihr unerträgliches Leben fort.