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16 de maio de 2022
[Opinião] EUA: gênese da cultura é negra e comunista, por Afonso Silvestre
Origens da música remetem a compositor checo e aos tão odiados negros
Quando o compositor checo Antonin Dvorák (1841-1904), compôs sua Nona Sinfonia em 1892-1893, estava se mudando para os Estados Unidos para ser diretor do Conservatório Nacional de Música da América. O segundo movimento da obra expressa o seu estado de espírito, saudoso da Boêmia, sua terra natal. Ele traz os elementos da música popular boêmia e morávia, e a sinfonia consolida as formas do romantismo de expressão germânica produzido no Império Austro-Húngaro na época. Mas esta música gerou também nos Estados Unidos uma identificação muito forte com seu sentido nostálgico. Na maioria dos filmes de western que tratam da ocupação do território, podem-se notar nas trilhas sonoras colagens das harmonias, dos timbres e das melodias que parecem contemplar ou descrever imensas pradarias.
Afora a música de Dvorák, tudo o que os Estados Unidos têm como referência de identificação universal é a música negra. Num modo de evolução seguindo a orientação de valores que estimulam a iniciativa privada com intervenção mínima do Estado, muitas demandas sociais ficaram para depois, inclusive a identidade. Como o caso da extensão do sufrágio para mulheres (1920) ou o reconhecimento de cidadania para indígenas (1924). Leis de Previdência Social, só a partir de 1935. O entendimento do conceito de cidadania ficava bastante prejudicado nessas condições. Porém, o processo da sua aquisição através dos direitos seguiu a ordem crono-lógica das democracias no século XIX, apontada pelo professor José Murilo de Carvalho. Os Direitos Civis no século XVIII passaram a abranger elementos políticos e a trazer os direitos políticos no século seguinte, culminando com os direitos sociais no século XX. Mas não foi assim para os negros, que permaneceram vistos e tratados como escravos mesmo após a abolição em 1863. Ou seja, nenhum sofrimento coletivo nos Estados Unidos se compara ao sofrimento dos homens, mulheres e crianças negras. São esses que determinam as expressões da verdadeira cultura do lugar.
Até os tempos da Guerra Civil (1861-1865), cada comunidade tinha seu próprio entendimento sobre cidadania. Este pensamento diverso e vago contribuiu muito para o fortalecimento das ideias de ruptura que levaram ao conflito armado. A nação tornara-se poderosa por conta da utilização da mão de obra escrava, e, portanto, seus beneficiários não iam querer abrir mão dela. Instala-se um confronto ideológico entre esses, que defendiam a ideia de que a escravidão seria fundamental para a manutenção das instituições livres, e os ideais positivistas que ganhavam força dentro da política desde o início daquele século. Estava instalada a luta pelos interesses de minorias contra a condenação dos abusos do capitalismo.
Em 1850, havia 3,8 milhões de escravos no Sul dos EUA. Porém, dos seis milhões de brancos que ali viviam, apenas um terço pertencia a famílias proprietárias de homens negros. Os outros quatro milhões eram os “brancos pobres”. Entre as famílias de posses, poucas possuíam mais de um ou dois negros. Dez eram artigo de luxo. Cerca de 8 mil plantadores possuíam, em média, 50 cada um, apenas 11 possuíam 500 ou mais. Dos 2,5 milhões de negros que trabalhavam na agricultura, 72% trabalhavam nas fazendas de algodão. O restante trabalhava no plantio e colheita de tabaco (14%), açúcar (6%), arroz (5%) e produção de fibras (2,4%). Esses brancos odiariam cada vez mais os negros alforriados.

Soldados da União em trincheiras na Virgínia. A luta contra os Confederados racistas do Sul não foi fácil, mas foi possível graças à industrialização.
O Sul se fortalece como fornecedor de matéria prima para a indústria do Norte, dando ali os seus primeiros passos. Desde a Guerra de 1812, declarada pelos EUA ao Reino Unido (ambos com apoio de tribos originais dos respectivos territórios), o Congresso vinha aplicando medidas protecionistas às indústrias do Norte, e isto prejudicou os produtores do Sul. Esses passaram a fazer pressões aos parlamentares, principalmente entre 1820 e 1840, exigindo a instalação de indústrias na região com garantia de empregos nas fábricas para brancos pobres. Naquele momento, esta população representava um terço de todo o país, mas apenas 15% dela estava empregada nas indústrias.
Os conflitos foram registrados por Karl Marx numa série de reportagens publicadas em A Guerra Civil nos Estados Unidos. O historiador afirmava que os pruridos causados pelas disputas políticas estariam levando mais ao agravamento da escravidão do que para sua solução. A manutenção das proteções tarifárias pelo Congresso passou a causar pequenas rebeliões de pequenos produtores em diversos locais. De fato, a Guerra de Secessão foi o último recurso para o impasse entre os defensores da separação dos Estados e os que reivindicavam a sua subordinação à União. Havia ainda outros fatores de agravamento, como as questões raciais, de terras e da sua ocupação por imigrantes, a necessidade de preservação da União, e uma infinidade de aspectos locais que fizeram explodir a guerra.
Após a Guerra, tendo sua liberdade institucionalizada, a população negra começa a adquirir cidadania através de códigos que concedem direito de propriedade, de recorrer à justiça, estabelecer contratos, casar, utilizar os sistemas públicos. Porém, essas mesmas normas, estabelecidas em 1865 e 1866, proibiam a esses quase cidadãos de votar, de portar armas, assumir cargo público ou até mesmo disputar empregos com brancos. Com o direito de trabalhar, porém, o cidadão negro não podia escolher o emprego. Era como dizer a ele, com toda naturalidade, a frase, hoje execrável, “tem que escolher entre ter direitos ou ter emprego”. O Estado tinha disponível, desta forma, mão de obra barata em grande quantidade. Em poucas palavras, a ação do Governo consistia em montar nas costas do negro para salvar a economia do Sul, seu escravizador.
Num processo de legitimação da segregação, outras leis foram aprovadas limitando os direitos desses novos cidadãos. Em 1866, nasce a Ku Klux Klan, defendendo a supremacia branca e indo onde a lei não poderia ir, ao uso da violência. A cada avanço, um retrocesso. A lei que deu aos negros acesso a lugares públicos foi revogada em 1883. Algumas leis determinavam lugares diferenciados para negros e brancos nos espaços públicos. As crianças negras, após a nova Constituição, cresciam percebendo que negros não eram totalmente cidadãos, nem exatamente pessoas escravizadas ou filhas de escravizados. Elas viam a diferença entre os seus e os outros, aquelas pessoas não retintas com os pescoços cor de rosa e olhos profundamente azuis. Elas cresciam e carregavam na memória diversas situações de constrangimento e humilhação sofrida pelos adultos que cuidavam delas, seus pais, tios, irmãos, vizinhos. Seus filhos nasceram, e depois outras gerações vieram, todas trazendo essas memórias sobre si mesmas.
Vemos pela televisão atentados terroristas de cidadãos brancos pobres supremacistas, fundamentalistas cristãos, que ainda hoje pensam como se estivessem no século XIX. Existem sob a paranoia de que a “raça” negra vai destruir a “raça” branca economicamente e geneticamente. Essas pessoas, como se fossem adestradas para o terrorismo, atualmente, são uma ameaça muito maior dentro dos EUA do que o terrorismo jihadista. Ocorrem centenas de ataques por ano e, numa busca aleatória pelo google, em 2021, apenas no mês de março, 41 pessoas foram mortas nesses atentados terroristas. São centenas de vítimas do ódio supremacista por ano. Ódio que traduz a ignorância a respeito da própria nação, que dizem defender, mas que é sustentada culturalmente pela população negra.
Trata-se de um assunto cuja compreensão é mal resolvida, e ela sempre se choca com um fato real a mostrar este nó na percepção das próprias identidades pelo povo nos EUA. Em 1895, Mark Twain (1835-1910) publica As aventuras de Huckleberry Finn, mas suprime um capítulo, só revelado 100 anos depois. A obra foi muito restrita até 1920, na verdade um tabu, algumas vezes proibida por lei em muitas cidades. Considerada imoral, pela razão de glorificar negros. Um século mais tarde, na entrada do século XXI, o livro era novamente alvo de polêmicas, mas desta vez acusado de destruir a humanidade dos negros. Ainda há municípios, centenas, que têm esta obra censurada nas suas escolas e bibliotecas nos EUA. Da sua parte mesmo, o escritor acreditava que os brancos deveriam pagar pela formação dos negros. Expressou isto diversas vezes e especialmente numa carta ao reitor da Universidade de Yale onde expressa o desejo de bancar os estudos de um jovem negro. “Nós temos que nos envergonhar disso, e não eles. E nós devemos pagar por isso”, escreveu.

Mark Twain, que inaugurou o romance dos Estados Unidos com obra polêmica a favor dos negros, ainda hoje incompreendida, acreditava que a nação devia indenizar o povo negro pelos males causados a eles ao longo de séculos
Huck Finn é um garoto branco sem mãe e filho de bêbado. Ele ajuda o amigo negro Jim, da sua idade e escravizado, a se esconder de sua dona numa fuga. Huck tem crise de consciência porque sabia que ajudar um negro era condenar-se ao inferno. Mas ele opta pela amizade. Uma injustiça sempre foi cometida sobre esta obra, que é reduzi-la a um manifesto racial. Trata-se de uma obra que inaugurou o romance nos Estados Unidos, este país de cultura tardia, mas que sempre desponta com arroubos inesquecíveis de genialidade e visionarismo. Porém, retrata, agora e em sua época, a confusão mental, o preconceito e a incapacidade de compreender a razão do outro, ou pelo menos a sua existência.
No capítulo censurado, numa madrugada de tempestade, Jim está organizando cadáveres numa morgue para que seu dono, um estudante de medicina, possa trabalhar pela manhã. A luz dos relâmpagos ilumina aqueles rostos pálidos e sem vida, projeta suas sombras nas paredes, numa cena assustadora. Jim, ao observar aqueles corpos brancos estendidos, percebe quão iguais são perante os negros, e reflete sobre as razões das injustiças cometidas por eles em vida.
A vida dos compositores e intérpretes do jazz, em sua maioria negros, foi um retrato desta realidade social norte-americana baseada na ignorância, no ódio e na ambição. Nasceram, a grande maioria, na pobreza e sob os olhares diferenciados dos outros cidadãos. Alguns deles, verdadeiramente talentosos, não suportaram esta segregação, outros descobriram meios de vencer esses obstáculos. Através da música, acabaram por expressar toda a história de opressão na qual foi fundada a ideia dos Estados Unidos como nação poderosa. Sempre considerei uma forma de abuso que a música seja um dos veículos de imposição da cultura, modo de vida e economia “americana” (como se vê, não são donos nem do próprio nome).
*Afonso Silvestre é historiador e funcionário público municipal.